PORQUE A PSICANÁLISE?
- Mauricio Pinheiro
- 22 de nov. de 2022
- 4 min de leitura
É inegável que a decisão de buscar por uma terapia, qualquer que seja ela, se justifica pela presença de uma queixa qualquer que, ainda que apresente sintomas sensíveis ao corpo, seja de fato de origem psíquica. A tão famosa psiquê humana, desde Freud, nos permite saber que a maior parte da composição mental de um sujeito é da ordem do inconsciente, o que significa dizer que ali há um espaço poderoso onde ele não reina com o seu saber, que ele mesmo desconhece e sofre, porque é dali que partem as pressões constantes das suas pulsões pessoais que buscam por satisfação, por ele mesmo reprimidas. desejos recalcados que clamam por libertação, ainda que isso pareça inconcebível para aquele que crê ter total domínio sobre o indominável de ser quem é, entregando ao EU a difícil tarefa de representa-lo frente ao mundo, paraíso insano daqueles que juram ter o seu próprio mundo sob controle.
Nascemos como um simples pedaço de carne, biologia pura, e a partir da nossa chegada somos tomados como objetos (dito de amor), por alguém que sacia as nossas necessidades mais primitivas enquanto escolhem o que vestiremos, o modo que seremos agasalhados, ainda que não saibam de que ordem é o nosso frio, escolhem nossos padrinhos, os nomes pelos quais seremos identificados por toda a vida, o time de futebol para o qual torceremos, a religião que seguiremos, sem falar em tantas outras escolhas feitas por esse outro, sempre justificadas pelo ato humano de amar.
Desses primeiros tempos de nossas vidas, escolho ressaltar a linguagem trazida por um outro como peça fundamental desse arcabouço de aprendizados que nos atravessa e nos divide, como se fossemos todos iguais, como se as palavras que são ditas, dissessem o mesmo a todos que as ouvem, como se a lei que vale para um, viesse a valer para todos os outros, ignorando as marcas das lâminas afiadas do amor materno. É claro que disso depende a nossa sobrevivência, considero a profunda importância desses cuidados que nos são oferecidos, sem os quais morreríamos e isso, por si só, já diz muito do poder inquestionável desse grande outro sobre nós. Diferente da cobra, do leão e do cachorro, que já nascem se sabendo cobras, leões e cachorros, nós não só teremos que aprender a sermos gente, no sentido ideal da palavra, como teremos que fazê-lo sob os padrões desses outros amorosos, aqui chamamos de pais, mães, avôs, avós, escolas e etc.
Por enquanto está tudo certo, até que em determinado momento nós também nos tornamos sujeitos, e sujeitos do inconsciente, sujeitados a ele, apesar de todo investimento feito em favor da criação de uma pessoa ideal para ser o que nela foi projetado. O que a psicanálise revela é que a conta do que nos foi oferecido, ainda que amorosamente, ao se encontrar com o que dessas ofertas guardamos, não fecha com o que dela fizemos no mais íntimo de nós. E é exatamente quando começamos a desconfiar que essa conta não fecha que somos convidados a colocar luz sobre esse obscuro objeto de amor, que se fez estranhos a nós mesmos. Do contrário, optando por não colocarmos luz sobre nossas questões, deixaremos que os sintomas falem por nós, em nós mesmos, para não termos que pagar o preço de ter que nos dizer quem somos, ou melhor, o que verdadeiramente desejamos!
E o analista, para que serve? Nunca para lhe dizer do mal que você sofre, me perdoe revelar, mas se falarmos de um analista ético, com uma formação decente, ele há de caminhar com você pelas trilhas do que lhe é turvo, escutando-o, e circunstancialmente provocando a junção das pontas soltas do que por você é dito, com o que por você não é escutado. O trabalho do analista é diametralmente oposto ao que faz o google, lugar contemporâneo dos saberes rápidos e universais. O analista não faz o prêt-à-porter da causa do analisante, o seu trabalho é de alta costura, confeccionado e moldado no corpo, peça única para cada sujeito que a ele se apresenta. A ele cabe apresentá-lo ao seu sintoma que, tal qual uma febre, indica que algo não vai bem, sem adiantar uma suposta causa/mensagem que haverá de ser decifrada, até que o paciente se perceba implicado com o seu próprio mal-estar, a ponto de inventar um modo particular de se haver com ele.
Ao contrário do que muitos pensam, é do amor que a psicanálise trata, daquilo que somos inquiridos a dar sem que ao menos o tenhamos para nós mesmos, é da ordem da falta comum a todos, inadmitida pela indústria do capital, que sobrevive da mentira de vender produtos que de um modo obscuro, sugerem ao consumidor que ali se tamponará o intamponável da alma humana. É a chamada travessia da fantasia, aquela que nos convida a nomear o inominável em nós para que possamos dar as coisas nossas e as do mundo, um nome que possamos dar conta de chamar de nosso, dando vida ao que chamamos de enunciado.
Por fim, ainda que contrariado com aqueles que buscam definir cartesianamente as coisas do mundo, gosto de pensar na psicanálise como a ciência do desejo, aquela que que nos convida à subversão de sermos originais nesse mundo de iguais, nos deixando saber que podemos sim, sobreviver com algum conforto, mesmo descobrindo que somos rosas e há espinhos nelas.
Maurício Pinheiro, escritor e psicanalista.
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